- Qualé da grana então, cabeça? Vamo trabalha, vamo trabalhá o pagamento, quanto vai ser?
Viu brotarem as rugas na face velha da mulher a sua frente. De trato grosso, mulher rude, feia e mal-educada; porca, com um rabo horroroso que, conquanto gordo, não servia nem para toucinho na feijoada, de tanta graxa, quanto mais para dar uma trepada.
- Tua vida.
A mulher, burra como um cavalo no deserto, submetia aquela frase a análise do seu tão pouco usado cérebro, dilacerado pela coca que havia cheirado alguns minutos antes no puteiro imundo em que se encontravam ambos os personagens. O caso é que, no tempo em que escrevi esse último parágrafo... não, calma. Digo ainda mais: a pobre mulher, vítima de incesto, órfã de mãe no parto, criada na miséria e na violência, filhos largados em hospitais, orfanatos, até mesmo um caso curioso em que entregou seu filho para um casal bondoso por um pouco de coca.
Agora sim, posso afirmar que, no tempo em que ela foi apresentada a você, tomou, a puta velha, uma paulada bem dada na cabeça, e mais não foi visto. Os policiais estavam de folga. A sociedade continuava de folga, vendo a novela.
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Agora, eram as 5 horas da tarde do dia seguinte, e Miguel adentrava no quarto da mulher no momento exato em que esta abria seus olhos.
Enquanto a mesma perguntava agitada "Onde estou?!?", Miguel já abria a janela - nesse momento, a mulher que havia se levantado num salto da cama tomou como que um susto, diria até um cagaço que é mais fiel à situação - e o cagaço ela tomava do sol maravilhoso que entrava pela janela, marcando a sombra de folhas na parede por trás de Miguel e da puta velha.
A mulher parou no mesmo supetão em que levantara. Creio que tenha sido pelo sol grande, mais a árvore frondosa e o vento refrescante que entrava pela janela, mas isso só Deus diria com certeza. Eu creio que fosse porque tudo isso ativava todos os sentidos da mulher praticamente de uma só vez e de forma tão intensa que ela jamais esqueceria.
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- Onde estou?
Agora, a pergunta era refeita sem as exclamações. Mais calma, a puta velha estava lá, sentadinha no mais comendo um pão e tomando um café - em sua frente, estava Miguel, jovem, daquela barba aparada mas insistente, e nisso residia grande parte da sua atração aos outros seres, todos os outros seres gostavam de Miguel, todos os vivos.
- Está no campo.
Verdadeiramente, era o campo. Mais que isso, obviamente era o campo. E a mulher era o diabo no campo.
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No segundo e no terceiro dia, a puta velha aprendeu a cozinhar e a costurar, lavou roupas, limpou a casa, comeu bem, bebeu bem, conversou com Miguel banalidades, e tinha aquela vida.
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Caminhavam pelo campo. Isso já era o quarto dia. A puta velha estava com umas roupinhas singelas, florzinhas bordadas, e segurava ramos de marcela às mãos os quais havia colhido junto de Miguel.
Naquele momento, respirou fundo. Pássaros amarelos cantaram. A puta velha sorriu. Seus dentes eram horrorosos, suas rugas marcantes. Seu corpo era um butijão grande.
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No quinto dia, a puta velha estava caminhando pela casa e se deparou com fotografias antigas - percebeu serem da família que morava ali naquela casa em que se encontrava. Passou a tarde olhando velhas fotografias. Miguel não estava nelas. Levantou-se do sofá em que passsara a tarde - ao chegar a sala, encontrou um homem bem feio sentado. Ele sorriu para ela, e seus dentes eram horrorosos. Convidou-a a sentar e beber algo. Ela sentou. Miguel não estava em casa.
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O homem dormiu na casa. Ao amanhecer do sexto dia, estava chovendo. Os dois fizeram amor pela manhã. Dormiram, acordaram, fizeram um farto almoço, comeram o bastante. A chuva parou, o sol reapareceu lindo, lindo. Os dois feios se deitaram à sombra daquela frondosa árvore, e passaram ali o crepúsculo. Miguel não apareceu o dia todo, novamente. O crepúsculo desceu, as almas saíam de suas tocas e tocavam àqueles dois, que juntos, eram felizes e nada de ruim sentiam.
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No sétimo dia, houve o descanso.
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Camila, a puta velha, acordou. Na maca de um pronto-socorro superlotado. Recebeu no pronto-socorro a informação de que havia tomado uma porrada por trás na cabeça; na rua, recebeu de uma amiga a informação de que outra amiga havia sido assassinada por traficantes na noite anterior; recebeu no puteiro a informação de que haviam roubado dela a cocaína de seu bolso naquela noite da porrada; recebeu de todos a informação de que não havia "Um menino com quem eu estava conversando, um rapaz de uns 25 anos".
Voltou para seu apê pequeno e sujo. Pela primeira vez, perdeu a vontade de cheirar. Viu na televisão pequena um homem feio. Bem feio, como ela.
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Virou diarista. Trabalhou com muito empenho, conquistou clientes. Ansiava por algo que não sabia exatamente o que era. Mudou de residência, para uma melhor. Era reconhecida pelas madames como honesta e trabalhadora. Sua diária aumentou um bocadinho, cerca de 20 pilas. Tirava perto de 1500 reais por mês.
Um dia, estava no mercado e esbarrou com um homem bem feio e velho.
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Camila, numa casinha pequena, trabalhava e tinha um homem feio. Que fazia alguma coisa boa com o coraçãozinho da Camila, a puta velha.
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Camila querida morreu algum dia, então conheceu Miguel.
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Caminhava com Miguel. E, junto do coração, levava uma fotografia velha, daquele homem bem feio e velho que havia conhecido...
domingo, 3 de abril de 2011
terça-feira, 26 de outubro de 2010
Carta a uma senhorita.
Não preciso de muita coisa na vida. Dinheiro, por exemplo. Preciso de dinheiro. Mas sabe, preciso de tão pouco... alguma notinha pouca que dê para comer e beber. Quero alguns trapos que me cubram o corpo, comprar cerveja, cachaça e erva-mate. Quero pagar o futebol, se preciso; pagar a música, se preciso. Comprar meus livros, qualquer ediçãozinha barata que dá pra ler igualzinho. Botar combustível no carro, comprar uma redezinha pra mim, que se for boa vai durar pra sempre, sabe? Dinheirinho para sair com os amigos vez em quando e, vez em quando, pagar uma cerveja porque meu coração esteja querendo tanto pagar aquela cerveja para um bom amigo. Dinheirinho para, vez em quando, dar um presentinho pra minha garota, que eu gosto dela, desse jeito. Quero botar um teto sobre minha cabeça e comprar uns cobertores.
Dos meus filhos que virão não sei muita coisa. Se sairão parecidos comigo? Meio complicado, só o seu José consegue algo parecido. Não que eu seja bom, ou ruim, ou único; mas sim que eu seja eu, sabe, do jeito que saí, do jeito que cresci, do jeito que amei e sonhei. Então, o que eu peço é que me tenham consideração, se quiserem mais do que eu em dinheiro, eu darei um jeito de ter um pouco mais pra eles. Só quero que me tenham consideração, que é tudo que um coração de pai deve querer durante toda a vida, creio.
Da mulher que me aguentar, queria o tal do amor. Mesmo. E é o mesmo com ela que com meus filhos: se ela também não se contentar com o tanto que eu me contento do dinheirinho, eu vou dar um jeito de ela ter mais também.
Só peço a essas pessoinhas todas que ainda virão a mim que não tentem me mudar, que sou feliz assim.
Deixem-me amando as coisas, as pessoas, que eu me acerto.
E assim eu fico acertado contigo, senhorita Vida...
Dos meus filhos que virão não sei muita coisa. Se sairão parecidos comigo? Meio complicado, só o seu José consegue algo parecido. Não que eu seja bom, ou ruim, ou único; mas sim que eu seja eu, sabe, do jeito que saí, do jeito que cresci, do jeito que amei e sonhei. Então, o que eu peço é que me tenham consideração, se quiserem mais do que eu em dinheiro, eu darei um jeito de ter um pouco mais pra eles. Só quero que me tenham consideração, que é tudo que um coração de pai deve querer durante toda a vida, creio.
Da mulher que me aguentar, queria o tal do amor. Mesmo. E é o mesmo com ela que com meus filhos: se ela também não se contentar com o tanto que eu me contento do dinheirinho, eu vou dar um jeito de ela ter mais também.
Só peço a essas pessoinhas todas que ainda virão a mim que não tentem me mudar, que sou feliz assim.
Deixem-me amando as coisas, as pessoas, que eu me acerto.
E assim eu fico acertado contigo, senhorita Vida...
domingo, 29 de agosto de 2010
"Que me perdoem as feias..."
Três pessoas tocavam num bar. Vocal e guitarra, baixista e baterista distribuíam os acordes, administravam suas progressões mudando o tom da noite a cada instante. Mandavam blues, mandavam jazz, mandavam rock, pausa, qualquer coisa... e nisso as mesinhas comportavam pessoas, típico bar de solitários. Não havia grupos de três pessoas ou mais, no máximo um casal aparentando tristeza modificava aquele cenário de solidão, o resto todo também era solidão. E os pensamentos eram quase visíveis, como se evaporassem dos cérebros em matéria gasosa, sem, no entanto, se poder discernir de que substância era composta essa matéria: tristeza, alegria, desleixo, preocupação...
E o som seguia soando naquele ambiente, quando entrou um rapaz. O rapaz aparentava pouco mais de 20 anos, bem-feito, barba por fazer, um aspecto quase latino, não fosse pelo tom de pele. E o rapaz foi notado por todos naquele ambiente porque era belo; a primeira impressão que se tinha sobre ele era a de que provavelmente nascera do ventre de uma sereia em uma noite de luar dourado, algo do tipo, algo mais do que poético, transcendente. E tinha um sorriso que o destacava ainda mais daquele ambiente triste, branco e perfeito, naquele bar escuro ele soava como pássaros cantando no final de uma caverna escura.
O rapaz pareceu não dar bola para aquela modificação toda nos aspectos, nas feições de tudo. Dirigiu-se ao bar, onde pediu uma dose de algum destilado vulgar, e sentou-se, e ali mesmo sorriu para a garota que atendia no bar, e conversou; e ela, que se mantinha constantemente triste, triste conhecida de todos os freqüentadores frequentes daquele local, sorriu, como há muito tempo não sorria, e seu corpo ficou mais ereto, ombros mais altos, sorriso firme.
Vendo aquilo, um casal sentado em uma mesa começou por sorrir pelos olhos, daqueles olhos que dão vazão às primeiras ações do corpo, e depois concluíram como se devia, sorriram ambos e posteriormente se olharam nos olhos um do outro, e sorriam com o sorriso e com os olhos e com toda sua linguagem corporal, menos tensa, e se beijaram como deviam se beijar.
E a banda, o trio no palco, obviamente havia notado o rapaz, belo como o Sol das seis. Notaram também aquele casalzinho postado logo à mesa da frente, aquele casalzinho que aparentava reescrever num pergaminho velho e amarelo uma nova história. Sem saber exatamente por que, a banda também mudou, o vocalista tirou sua camisa xadrez escura como breu e exibiu uma singela camiseta branca por baixo daquilo, e também sorriu, e começou a cantar sorrindo, tocava um funk bem animado do Tower of Power agora; o baixista ficou tão mais feliz com aquela batida swingada que ficou a ponto de girar seu corpo no ar no ritmo dos dedos tocando aquele baixo, do baterista nem se fala...
E, naquele impulso todo que tomou conta do barzinho, sujo, escuro, feio da meia-noite de alguma cidade, os solitários começaram a bater na mesa do bar inconscientemente, naquele ritmo empolgante do funk, baixinho baixinho, para apenas eles ouvirem, e os casais balançavam discretamente nas cadeiras; alguns solitários levantaram, foram ao bar, pediram algo para beber, mas agora ficavam de pé, curtindo o som, aquela animação toda. De repente, alguém chegou na entrada do bar e percebeu aquela onda de sorrisos, e entrou sorrindo. Logo, logo, entrariam mais pessoas, magicamente cerca de quinze entraram em 20 minutos. E o bar animava-se...
Depois de trinta minutos dentro daquele bar, o rapaz belo, quase latino, que entrara ali, o rapaz despediu-se da garota do bar que se sentia excepcionalmente bem; o rapaz tomou o último trago da sua bebida, fez um gesto ao vocalista como que se despedindo, e tomou seu rumo para fora do bar, caminhando lentamente.
Uma garota que vira o rapaz chegar saiu atrás dele; estava encantada com ele, e queria conhecê-lo. Quando saiu do bar, porém, logo atrás do garoto, ele sumira: por toda a vista donde se alcançava, não havia rapaz nenhum, e a noite cantava mais forte sua música, que era de silêncio e rompantes fora do bar.
E a garota voltou para dentro do bar, e foi ao balcão; tudo mudara, tudo estava tão animado, e a garota do bar estava demais, muito alegre atrás do balcão.
A garota que fora atrás foi até a garota que conversara com o garoto.
Perguntou quem era o garoto, e a garota do bar perguntou: “Que garoto?”
A garota deu de ombros e seguiu curtindo tudo aquilo que uma coisa bela pôde causar naquele bar, esse bar que era tão parecido com a vida.
E o som seguia soando naquele ambiente, quando entrou um rapaz. O rapaz aparentava pouco mais de 20 anos, bem-feito, barba por fazer, um aspecto quase latino, não fosse pelo tom de pele. E o rapaz foi notado por todos naquele ambiente porque era belo; a primeira impressão que se tinha sobre ele era a de que provavelmente nascera do ventre de uma sereia em uma noite de luar dourado, algo do tipo, algo mais do que poético, transcendente. E tinha um sorriso que o destacava ainda mais daquele ambiente triste, branco e perfeito, naquele bar escuro ele soava como pássaros cantando no final de uma caverna escura.
O rapaz pareceu não dar bola para aquela modificação toda nos aspectos, nas feições de tudo. Dirigiu-se ao bar, onde pediu uma dose de algum destilado vulgar, e sentou-se, e ali mesmo sorriu para a garota que atendia no bar, e conversou; e ela, que se mantinha constantemente triste, triste conhecida de todos os freqüentadores frequentes daquele local, sorriu, como há muito tempo não sorria, e seu corpo ficou mais ereto, ombros mais altos, sorriso firme.
Vendo aquilo, um casal sentado em uma mesa começou por sorrir pelos olhos, daqueles olhos que dão vazão às primeiras ações do corpo, e depois concluíram como se devia, sorriram ambos e posteriormente se olharam nos olhos um do outro, e sorriam com o sorriso e com os olhos e com toda sua linguagem corporal, menos tensa, e se beijaram como deviam se beijar.
E a banda, o trio no palco, obviamente havia notado o rapaz, belo como o Sol das seis. Notaram também aquele casalzinho postado logo à mesa da frente, aquele casalzinho que aparentava reescrever num pergaminho velho e amarelo uma nova história. Sem saber exatamente por que, a banda também mudou, o vocalista tirou sua camisa xadrez escura como breu e exibiu uma singela camiseta branca por baixo daquilo, e também sorriu, e começou a cantar sorrindo, tocava um funk bem animado do Tower of Power agora; o baixista ficou tão mais feliz com aquela batida swingada que ficou a ponto de girar seu corpo no ar no ritmo dos dedos tocando aquele baixo, do baterista nem se fala...
E, naquele impulso todo que tomou conta do barzinho, sujo, escuro, feio da meia-noite de alguma cidade, os solitários começaram a bater na mesa do bar inconscientemente, naquele ritmo empolgante do funk, baixinho baixinho, para apenas eles ouvirem, e os casais balançavam discretamente nas cadeiras; alguns solitários levantaram, foram ao bar, pediram algo para beber, mas agora ficavam de pé, curtindo o som, aquela animação toda. De repente, alguém chegou na entrada do bar e percebeu aquela onda de sorrisos, e entrou sorrindo. Logo, logo, entrariam mais pessoas, magicamente cerca de quinze entraram em 20 minutos. E o bar animava-se...
Depois de trinta minutos dentro daquele bar, o rapaz belo, quase latino, que entrara ali, o rapaz despediu-se da garota do bar que se sentia excepcionalmente bem; o rapaz tomou o último trago da sua bebida, fez um gesto ao vocalista como que se despedindo, e tomou seu rumo para fora do bar, caminhando lentamente.
Uma garota que vira o rapaz chegar saiu atrás dele; estava encantada com ele, e queria conhecê-lo. Quando saiu do bar, porém, logo atrás do garoto, ele sumira: por toda a vista donde se alcançava, não havia rapaz nenhum, e a noite cantava mais forte sua música, que era de silêncio e rompantes fora do bar.
E a garota voltou para dentro do bar, e foi ao balcão; tudo mudara, tudo estava tão animado, e a garota do bar estava demais, muito alegre atrás do balcão.
A garota que fora atrás foi até a garota que conversara com o garoto.
Perguntou quem era o garoto, e a garota do bar perguntou: “Que garoto?”
A garota deu de ombros e seguiu curtindo tudo aquilo que uma coisa bela pôde causar naquele bar, esse bar que era tão parecido com a vida.
terça-feira, 17 de agosto de 2010
Carta do garoto 20, ao mundo e à alma.
"Ah, que sensações desprendem-se de mim e assustam. Tenho pessoas aqui ao meu redor que não me compreendem e temem: temem aquilo que não entendem, aquilo a que resistem que é a vida de verdade solta no mundo fora do que vivemos, todos vivendo dentro da mesma bolha saturada e se matando por um pouco de papel ou um pouco mais de sociedade, esse vício maldito.
Ah, que medo tenho dentro de mim ao mesmo tempo. Que medo de soltar todo esse apego e procurar aquilo que nos proíbem: a vida que nosso coração quer, os caminhos com coração de Dom Juan e Castañeda. Ver o mundo como algo diferente, numa concepção diferente e ousada. Esquecer daquilo que nos prende tão mesquinhamente e se soltar sem medo por todos os caminhos com coração, e com os nossos corações soltos das jaulas. Com os nossos corações gritando por aí e fugindo de nós num eterno pega-pega divertido no qual sempre venceríamos...
Ah, que fascinação pela qual me toma o crepúsculo e surpreende meus sentidos; e, assim, retoma meus velhos sonhos, tentando vencê-los conjurando novos sonhos. Por que tamanha exultação me pega o crepúsculo vencendo o mistério do sol com um pouco de vinho e Janis Joplin com "Cry Baby", que é como procuro o ajudar a me ajudar - falo do crepúsculo, esse fantasma camarada...
Ah, não me mente jamais, minha alma. Pode sempre - dou-te permissão - tomar-me pela mão e levar-me aos mais diversos lugares que de ti não tenho medo algum! E sei que queres meu bem, meu bem, por isso entrego-me ao teu belprazer no meio da tempestade de quaisquer sentimentos que venham a mim, calhando-me eles ou não. E tu me levas assim, embriagada por qualquer coisa ou não, sem carteira de motorista ou RG ou CPF, para qualquer canto do universo; da minha mente; da mente dos outros. E tu me tens assim, para todo o sempre, trato de sangue e de ectoplasma além da vida.
Ah, minha alma, digo-te: tenho dentro de mim a fagulha para um incêndio, resistindo a tudo. Fagulha que não se apaga, não, de forma alguma: ela se transmuta, modifica-se ou mente para todas as forças, mas permanece ali - triste de mim que ela fica ali fagulha, não prende o fogo e vira chama para destruir todo o universo que criei dentro de mim e virar algo maior que tudo, que vê e enxerga o mundo de um jeito que não é o jeito de sempre, sem medo de nada e humilde a tudo.
Ah, minha alma, digo-te: sou pequeno, mas eu e minha fagulha vencemos o inferno com um pouco de álcool..."
Ah, que medo tenho dentro de mim ao mesmo tempo. Que medo de soltar todo esse apego e procurar aquilo que nos proíbem: a vida que nosso coração quer, os caminhos com coração de Dom Juan e Castañeda. Ver o mundo como algo diferente, numa concepção diferente e ousada. Esquecer daquilo que nos prende tão mesquinhamente e se soltar sem medo por todos os caminhos com coração, e com os nossos corações soltos das jaulas. Com os nossos corações gritando por aí e fugindo de nós num eterno pega-pega divertido no qual sempre venceríamos...
Ah, que fascinação pela qual me toma o crepúsculo e surpreende meus sentidos; e, assim, retoma meus velhos sonhos, tentando vencê-los conjurando novos sonhos. Por que tamanha exultação me pega o crepúsculo vencendo o mistério do sol com um pouco de vinho e Janis Joplin com "Cry Baby", que é como procuro o ajudar a me ajudar - falo do crepúsculo, esse fantasma camarada...
Ah, não me mente jamais, minha alma. Pode sempre - dou-te permissão - tomar-me pela mão e levar-me aos mais diversos lugares que de ti não tenho medo algum! E sei que queres meu bem, meu bem, por isso entrego-me ao teu belprazer no meio da tempestade de quaisquer sentimentos que venham a mim, calhando-me eles ou não. E tu me levas assim, embriagada por qualquer coisa ou não, sem carteira de motorista ou RG ou CPF, para qualquer canto do universo; da minha mente; da mente dos outros. E tu me tens assim, para todo o sempre, trato de sangue e de ectoplasma além da vida.
Ah, minha alma, digo-te: tenho dentro de mim a fagulha para um incêndio, resistindo a tudo. Fagulha que não se apaga, não, de forma alguma: ela se transmuta, modifica-se ou mente para todas as forças, mas permanece ali - triste de mim que ela fica ali fagulha, não prende o fogo e vira chama para destruir todo o universo que criei dentro de mim e virar algo maior que tudo, que vê e enxerga o mundo de um jeito que não é o jeito de sempre, sem medo de nada e humilde a tudo.
Ah, minha alma, digo-te: sou pequeno, mas eu e minha fagulha vencemos o inferno com um pouco de álcool..."
quinta-feira, 24 de junho de 2010
Dois garotos ficaram à beira do lago.
Dois garotos chegaram à beira do lago. No frio, portavam aos pescoços cachecóis quentes que cultivavam a saúde de seus corpos, escondendo a saúde de suas mentes. Pararam à beira - lago grande -, e pensavam, cada qual com seus botões.
Um dos jovens, mais jovem, mexia-se pouco. Não era tão ansioso quanto o outro, mais velho, que se mexia sem parar rodando no redemoinho imenso da própria mente. O jovem mais novo parava com o olhar fixo para o horizonte daquele mar imenso, e apenas refletia, e descobria em cada novo átomo de vida algo diferente. Sua mente, mais oxigenada, mais limpa, menos condensada que a do pobre vivente mais velho, essa mente maravilhosa formulava soluções impossíveis para todos os seus problemas: pensava no que fazer, na infinita possibilidade de coisas para se fazer na vida. Ler um livro no topo de uma montanha era o mesmo que caçar corujas em um bosque nevado na noite escura, ou o mesmo que tomar uma cerveja em um bar comum com seus velhos amigos - tudo era pequeno e insignificante diante da imensidade da vida; tudo era maravilhosamente belo porque era vida, e isso tudo ia o consumindo aos poucos, e transformando-o novamente, e o aprontando para novas vidas, para novas coisas, para novas maravilhas do mundo que nada mais era do que uma bolinha de papel bem grande, que ele podia manipular ao belprazer sem maiores incomôdos.
O outro jovem, na verdade, era uma mentira. Não era jovem, por sinal, aqui mentimos pela beleza da imagem: um senhor já, cerca de 50, 55 anos. Era um monumental dinossauro da vida, um mal-resolvido tecodonte ao qual haviam esquecido de avisar de sua morte. Nesse tecodonte imbecil, mil e uma manipulações do descontentamento possuíam sua mente absurdamente cheia, e cheia de consequências, e cheia para sempre. Aquele senhor não acreditava mais em nada: tudo era uma impossível manipulação de bruxedos infinitos dos deuses do universo para que tudo desse errado. Seus filhos tinham suas famílias, sua mulher não lhe dava mais bola, era um aposentado sem ocupações que lutava por mais e mais inimizades de seus antigos amigos. Não encontrava mais gosto em nada, nem no que fazia, nem no que bebia, nem nada, nem nada. Naquele momento, olhava para o sol se pondo ao fim da linha do horizonte e pensava que nada fazia sentido naquela imensidão de acontecimentos sem sentido que era a vida desde sempre. "Viver para que? Nascer, comer, crescer, trepar, morrer? A troco de que diabo de coisa, a troco de que porra? Sou essa porra de..."
Suas reticências foram tão longas quanto o tamanho do que era o coração do jovem ao seu lado. Naquele coração cabia todo o mundo que viria ainda, cabia inclusive comiseração por aquele senhor.
- Como é seu nome, senhor?
- Meu nome? Por que quer saber, menino?
- Para nada, preciso de um porquê para isso?
O jovem falou “isso” com aqueles olhos brilhando no horizonte, fulgurantes, maravilhosos. Talvez sua menina o estivesse esperando em casa, talvez fosse encontrar seus amigos, talvez fosse escalar o Everest logo a seguir, talvez qualquer coisa.
Mas a verdade é que apenas curtia o vento batendo em sua cara e ouvia o coração do mundo bater adoidado. Convidou o velho para sentar ali, junto consigo, e ali ficaram, por várias horas, sentados, olhando para o horizonte, e trocando suas considerações sobre a vida.
Quem olhasse com os olhos certos aquela cena juraria que o velho brilhava cada vez mais, cada vez mais, e, aos poucos, junto com aquele garoto, substituía a luz do sol que se punha no horizonte, no horizonte gigante do tamanho de tudo...
Um dos jovens, mais jovem, mexia-se pouco. Não era tão ansioso quanto o outro, mais velho, que se mexia sem parar rodando no redemoinho imenso da própria mente. O jovem mais novo parava com o olhar fixo para o horizonte daquele mar imenso, e apenas refletia, e descobria em cada novo átomo de vida algo diferente. Sua mente, mais oxigenada, mais limpa, menos condensada que a do pobre vivente mais velho, essa mente maravilhosa formulava soluções impossíveis para todos os seus problemas: pensava no que fazer, na infinita possibilidade de coisas para se fazer na vida. Ler um livro no topo de uma montanha era o mesmo que caçar corujas em um bosque nevado na noite escura, ou o mesmo que tomar uma cerveja em um bar comum com seus velhos amigos - tudo era pequeno e insignificante diante da imensidade da vida; tudo era maravilhosamente belo porque era vida, e isso tudo ia o consumindo aos poucos, e transformando-o novamente, e o aprontando para novas vidas, para novas coisas, para novas maravilhas do mundo que nada mais era do que uma bolinha de papel bem grande, que ele podia manipular ao belprazer sem maiores incomôdos.
O outro jovem, na verdade, era uma mentira. Não era jovem, por sinal, aqui mentimos pela beleza da imagem: um senhor já, cerca de 50, 55 anos. Era um monumental dinossauro da vida, um mal-resolvido tecodonte ao qual haviam esquecido de avisar de sua morte. Nesse tecodonte imbecil, mil e uma manipulações do descontentamento possuíam sua mente absurdamente cheia, e cheia de consequências, e cheia para sempre. Aquele senhor não acreditava mais em nada: tudo era uma impossível manipulação de bruxedos infinitos dos deuses do universo para que tudo desse errado. Seus filhos tinham suas famílias, sua mulher não lhe dava mais bola, era um aposentado sem ocupações que lutava por mais e mais inimizades de seus antigos amigos. Não encontrava mais gosto em nada, nem no que fazia, nem no que bebia, nem nada, nem nada. Naquele momento, olhava para o sol se pondo ao fim da linha do horizonte e pensava que nada fazia sentido naquela imensidão de acontecimentos sem sentido que era a vida desde sempre. "Viver para que? Nascer, comer, crescer, trepar, morrer? A troco de que diabo de coisa, a troco de que porra? Sou essa porra de..."
Suas reticências foram tão longas quanto o tamanho do que era o coração do jovem ao seu lado. Naquele coração cabia todo o mundo que viria ainda, cabia inclusive comiseração por aquele senhor.
- Como é seu nome, senhor?
- Meu nome? Por que quer saber, menino?
- Para nada, preciso de um porquê para isso?
O jovem falou “isso” com aqueles olhos brilhando no horizonte, fulgurantes, maravilhosos. Talvez sua menina o estivesse esperando em casa, talvez fosse encontrar seus amigos, talvez fosse escalar o Everest logo a seguir, talvez qualquer coisa.
Mas a verdade é que apenas curtia o vento batendo em sua cara e ouvia o coração do mundo bater adoidado. Convidou o velho para sentar ali, junto consigo, e ali ficaram, por várias horas, sentados, olhando para o horizonte, e trocando suas considerações sobre a vida.
Quem olhasse com os olhos certos aquela cena juraria que o velho brilhava cada vez mais, cada vez mais, e, aos poucos, junto com aquele garoto, substituía a luz do sol que se punha no horizonte, no horizonte gigante do tamanho de tudo...
quarta-feira, 16 de junho de 2010
Biblos
Biblos é uma cidade situada nalgum lugar que está por aí. Biblos é muito bem organizada: as vias são aquáticas, que as pessoas aproveitam para, assim, não ter de tomar banho em casa e ganhar resistência às doenças, pois todas dividem os mesmos microorganismos, uma beleza comunitária.
Biblos não tem governantes; tem sim uma urna em que qualquer habitante considerado cidadão (coisa que lá inclui homens, mulheres, crianças e os patos, que são também animais sagrados) coloca sugestões - os patos, no caso, fingem falar, e os humanos fingem entender, e dá tudo certo. Então, é a democracia do bilhetinho, e é tão esperta quanto encher balões de aniversário a sopro: todo dia é sorteado um bilhetinho com alguma sugestão, que é imediatamente adotada. Isso dá problemas, como na vez em que a sugestão retirada foi a de revogar as togas púrpuras como traje oficial, e adotar as calcinhas de papel crepom. Os patos - animais sagrados, bem dito - não souberam como adotar a vestimenta e engoliram-na, causando assim um morticídio gigante dos patos, o que causou enorme comoção. Além disso, as próprias pessoas estranharam, num primeiro momento, aquelas vestimentas tão diferentes, mas, de todo o modo, aquilo gerou novos ramos no comércio biblense: capas de plástico para os dias de chuva, nos mais diversos formatos, bótons que acendiam luzinhas quando as pessoas ficavam excitadas (o que gerou grande comércio de carregadores também), coisas das mais diversas, das mais diversas.
Em Biblos, há grandes negócios - o principal é vender orangotangos às putas: negócio bem bom, que movimenta milhões. Orangotangos enfeitam as sex shops com seu apelo sexual impressionante, são mania da cidade, e as putas os usam para fins secretos, que ninguém jamais descobriu, pois o sindicato mais unido de Biblos é o delas, as putas, profissão antiga e bem conceituada.
Biblos tem algumas situações bem peculiares, mas são poucas, é claro. Não há festas em ambientes fechados, com a justificativa de que espermatozóides são vírus que podem fluturar e entrar em corpos livremente, implantados nos biblenses pela cidade vizinha, Judiará do Norte, com a intenção final de superlotar a cidade de Biblos e, assim, vencer a briga centenária pela Madame Diarréia, que é uma entidade de Biblos tão sagrada quanto os patos - para que se tenha uma idéia, os patos, animais sagrados que são, ao ver a estátua de urânio de Madame Diarréia, enterram seus bicos na terra e assim ficam, com suas bundas para cima, em silêncio, por um minuto, quando finalmente se dão conta de que já estão sendo ridículos frente aos humanos, seres inferiores, cidadães inferiores e, então, saem grasnando, desaforados.
Biblos tem algumas peculiaridades que se renovam. Ainda saberemos de mais algumas. Por enquanto, há de se saber que 17 de junho é o dia biblense do embelezamento de Madame Diarréia, portanto, tudo está parado em Biblos. Mais virá.
Biblos não tem governantes; tem sim uma urna em que qualquer habitante considerado cidadão (coisa que lá inclui homens, mulheres, crianças e os patos, que são também animais sagrados) coloca sugestões - os patos, no caso, fingem falar, e os humanos fingem entender, e dá tudo certo. Então, é a democracia do bilhetinho, e é tão esperta quanto encher balões de aniversário a sopro: todo dia é sorteado um bilhetinho com alguma sugestão, que é imediatamente adotada. Isso dá problemas, como na vez em que a sugestão retirada foi a de revogar as togas púrpuras como traje oficial, e adotar as calcinhas de papel crepom. Os patos - animais sagrados, bem dito - não souberam como adotar a vestimenta e engoliram-na, causando assim um morticídio gigante dos patos, o que causou enorme comoção. Além disso, as próprias pessoas estranharam, num primeiro momento, aquelas vestimentas tão diferentes, mas, de todo o modo, aquilo gerou novos ramos no comércio biblense: capas de plástico para os dias de chuva, nos mais diversos formatos, bótons que acendiam luzinhas quando as pessoas ficavam excitadas (o que gerou grande comércio de carregadores também), coisas das mais diversas, das mais diversas.
Em Biblos, há grandes negócios - o principal é vender orangotangos às putas: negócio bem bom, que movimenta milhões. Orangotangos enfeitam as sex shops com seu apelo sexual impressionante, são mania da cidade, e as putas os usam para fins secretos, que ninguém jamais descobriu, pois o sindicato mais unido de Biblos é o delas, as putas, profissão antiga e bem conceituada.
Biblos tem algumas situações bem peculiares, mas são poucas, é claro. Não há festas em ambientes fechados, com a justificativa de que espermatozóides são vírus que podem fluturar e entrar em corpos livremente, implantados nos biblenses pela cidade vizinha, Judiará do Norte, com a intenção final de superlotar a cidade de Biblos e, assim, vencer a briga centenária pela Madame Diarréia, que é uma entidade de Biblos tão sagrada quanto os patos - para que se tenha uma idéia, os patos, animais sagrados que são, ao ver a estátua de urânio de Madame Diarréia, enterram seus bicos na terra e assim ficam, com suas bundas para cima, em silêncio, por um minuto, quando finalmente se dão conta de que já estão sendo ridículos frente aos humanos, seres inferiores, cidadães inferiores e, então, saem grasnando, desaforados.
Biblos tem algumas peculiaridades que se renovam. Ainda saberemos de mais algumas. Por enquanto, há de se saber que 17 de junho é o dia biblense do embelezamento de Madame Diarréia, portanto, tudo está parado em Biblos. Mais virá.
sexta-feira, 4 de junho de 2010
Ele nunca mais ouviria "Stand By Me".
Rumava preso na clausura da sua alma pela noite. Fechado como estava, não teria paciência para se solidarizar com o frio por que passava o mendigo enrolado em jornais velhos com manchetes de algum político sorridente roubando o povo, talvez apenas por existir. E era fria a desgraçada daquela noite, e era fria a sua alma, mesmo, sem nenhuma brincadeira. O mendigo ficou ali, pelo caminho do rumo daquele menino, ali ficou o mendigo...
Atravessou as ruas com cara de capeta, de demônio. A vida era péssima como olhar para o horizonte em uma grande cidade, era terrível e ponto. Pessoas passavam mentindo para suas próprias vidas ao seu lado, perdidas na inconsciência coletiva do que é sermos o que somos, tornar-mo-nos o que nos tornamos com esse passar dos séculos, com a sociedade construída que foi, do jeito que foi - tudo é certo nessa vida sem que nós realmente achemos certo...
Não tinha por que ver muitos problemas na vida. Sempre tivera de tudo, e ainda era jovem. Mas o que vem a nós vem de qualquer modo, e mata ou cria.
De que modo havia passado aquele dia pensando em tudo? Percebendo tantas coisas que percebera em apenas uma noite, pensando na metafísica e no universo, e em toda a baboseira transcendental de sermos o que somos no meio de tudo o que é... etc, etc, deixa quieto? "Não!", gritou-lhe o espírito inquieto, e ele consente, e ele resolve resolver seus problemas.
Toma de uns fones de ouvidos e de suas músicas, e as enfia no ouvido tornando-o único na sua essência: o que vê é o mundo que sempre viu, o que cheira são os cheiros que sempre cheirou, tudo o que toca é o mesmo que sempre tocou, mas, ao menos, o que ouve é o seu mundo, o mundo em que quer estar naquele momento para ser de todo ele mesmo.
Músicas tocam, pensamentos voam, todos sem nexo ou finalidade, apenas pensamentos. Mais músicas tocam, mais o negrume da noite plena o sufoca, atinge-o em cima com todo o medo que traz a escuridão desde a pré-história, mais e mais ele se sente pior, mas aquilo é o que ele quer, confrontar. Vencer seus medos. É para aquilo que caminha na noite sem querer caminhar, é para aquilo que vai desafiando todo seu mal-estar.
Mais músicas tocam, mais o tempo passa, mais ele caminha. Já não se sabe por onde anda, se em alguma estranha realidade diferente do que quer que fosse a sua, ele caminha e está longe de tudo o que era... cabelos cresceram, uma barba se formou e tomou conta de seu queixo antes de quiabo - amedrontado, ele se enxerga na água de algum lago nalgum lugar do mundo em que está, e vê um ser completamente diferente daquele que se lembrava. "Azar..." - lamenta-se - "azar!". Do outro lado do lago, alguém acena para ele - a silhueta não lhe é estranha, mas parece tão longe, tão longe...
Segue caminhando, e suas músicas continuam seguindo-no ao longo de todo o tempo. Agora, ao se ver no espelho do banheiro de algum bar em algum lugar, enxerga um senhor barbudo, algo como 30 anos de vida, uma barba ainda maior, alguma ruga e um rosto judiado, judiado... cada vez mais judiado. Enxerga, aos fundos, pessoas entrando trazendo a decadência à tona - cigarros, destilados, putas velhas e mal-formadas com bocas feias, quiçá desdentadas. Enlaçam-no, tomam-no por coisinha pouca. Mas ele ainda tem forças, ele foge, ele sai correndo daquele bar...
E ele corre, corre, corre cada vez mais, até que decola... levanta vôo. E vê no ar humanos velhos, muito velhos. Não precisa de espelho nem nada naquele momento para saber como ele próprio está - deve ter algo como 60 anos, a julgar pela média da idade dos outros velhos voadores. E ele flutua, passa rápido por eles, e vê a tristeza e desleixo estampada no rosto de todos eles. Topa com urubus medonhos, assustadores, que não atacam ninguém, mas pairam no ar, pairam...
Ele finalmente consegue diminuir o ritmo. Aos poucos, sente que consegue controlar, e vai pousando. Consegue pousar, ufa! "Consegui!". Ah, aquilo parece a ele uma vitória, finalmente.
Ao pousar, ele vê várias cadeiras - enfileiradas, e colocadas como em uma sala de cinema. Todas estão ocupadas por velhos - alguns, completamente entregues. Outros, com alguma ânsia impossível e magnífica, uma ânsia de se deslocar daquelas cadeiras, fugir daquilo que pareciam amarras invisíveis...
O velho, o nosso velho, batendo nos 80 anos, senta-se na única cadeira vaga, na qual o seu nome brilha no negrume da noite escura. Ao sentar-se, toma sentido de que, às suas costas, há um lago. E, ao fundo daquele lago, há um telão gigante.
No telão, surge um assustador palhaço amarelo e verde. O palhaço amarelo e verde tem um sorriso estampado na cara, e anuncia, agora, que irão assistir à sessão da vida do nosso velho. O palhaço dá uma risada, e se retira da tela.
O velho, então, assiste a sua vida, todos os momentos de felicidade que sempre viveu, até o momento em que as coisas começaram a complicar, até mais ou menos o momento em que ele saíra de casa para caminhar no negrume da noite. Percebe que vira um mendigo tiritando de frio logo à margem de sua casa, logo no início de sua caminhada, aquilo de tanto tempo atrás, anos, séculos atrás... percebe que não o ajudou, e percebe que, exatamente no momento em que deu as costas para o mendigo, seus cabelos cresceram, e uma barba nasceu...
O velho fica desesperado! O velho percebe as coisas ainda, ainda tem algum sentimento, alguma consciência. Ele entende o que aconteceu, e percebe que tudo o que está sentindo naquele momento é possivelmente o maior absurdo aterrorizante que um ser humano possa sentir - a vontade de se entregar, se matar?
O velho não quer morrer! (O menino não quer morrer!) O velho tem medo! (O menino tem medo!)
O velho/menino tem, então, um momento de lucidez.
O velho/menino sabe que o menino vai se agachar, em alguns 10 minutos, ele crê, na outra margem daquele lago em que o velho/menino está sentado assistindo à sessão de cinema.
O velho/menino põe-se a nadar enlouquecido! Não sabe de onde tira forças, seus músculos não deviam ter toda aquela força, apesar de o lago ser curto. Mas, a verdade, talvez a verdade fosse que existia um menino ainda empurrando aquele velho...
O velho/menino chega à outra margem, e percebe que nadou em uma diagonal, fugiu da reta em que queria encontrar o menino. Olha para a outra margem ao sair da água, e percebe uma pessoa acenando para o menino que ele era.
Corre desesperado em direção ao menino que era, lá está o velho/menino se desfacelando, sem forças, cada vez mais fraco.
Mas o velho/menino chega ao menino que era. E, ao chegar, o menino toma um susto absurdo. Apesar do susto, porém, o menino sabe exatamente para o que está olhando, de alguma estranha forma nalguma estranha realidade, mas ele sabe.
O velho/menino, ao chegar ao menino, tem uma faca nas mãos. Não se sabe de onde tirou aquela faca, mas ele a tem. E encara o menino nos olhos, e tem raiva do que o menino fez. Lembra, porém, de que aquele foi ele...
AO olhar pela última vez o menino que era, o velho/menino diz, apenas:
"O mendigo."
Crava no peito a faca. E os palhaços riem, e o menino foge, desesperado, daquele lugar, para onde espera nunca mais voltar...
Ao despertar daquilo, o menino não sabe. Não sabe se viveu um sonho, ou alguma estranha realidade; não sabe, sequer, onde está, a princípio. Depois de uma estranha confusão maluca, percebe-se num parque, com crianças correndo por todas as direções, famílias, felicidade esplêndida e incandescente, maluca, contagiante, absurda.
Toma, em seu bolso, seus fones de ouvido, suas músicas.
E, enquanto uma menininha linda passa pela frente dele de mãos dadas com seu pai; enquanto uma bela mulher de algo como seus 30 anos passa embalando um carrinho de bebê, e enquanto o sol sorri da forma mais bela que jamais havia sorrido para o nosso menino, ele tem uma certeza...
Depois do que quer que fosse que houvesse sido toda aquela doideira, ele tinha absoluta certeza de que aqueles acordes magníficos de Stand By Me embalado por um Oasis ainda melhor do que jamais fora jamais lhe soariam novamente os mesmos.
Ele nunca mais ouviria Stand By Me. Pelo menos, nunca mais do mesmo jeito.
No universo inteiro que o rodeava, a vida lhe divertia imensamente, e explodia em seu peito, como nunca antes...
Atravessou as ruas com cara de capeta, de demônio. A vida era péssima como olhar para o horizonte em uma grande cidade, era terrível e ponto. Pessoas passavam mentindo para suas próprias vidas ao seu lado, perdidas na inconsciência coletiva do que é sermos o que somos, tornar-mo-nos o que nos tornamos com esse passar dos séculos, com a sociedade construída que foi, do jeito que foi - tudo é certo nessa vida sem que nós realmente achemos certo...
Não tinha por que ver muitos problemas na vida. Sempre tivera de tudo, e ainda era jovem. Mas o que vem a nós vem de qualquer modo, e mata ou cria.
De que modo havia passado aquele dia pensando em tudo? Percebendo tantas coisas que percebera em apenas uma noite, pensando na metafísica e no universo, e em toda a baboseira transcendental de sermos o que somos no meio de tudo o que é... etc, etc, deixa quieto? "Não!", gritou-lhe o espírito inquieto, e ele consente, e ele resolve resolver seus problemas.
Toma de uns fones de ouvidos e de suas músicas, e as enfia no ouvido tornando-o único na sua essência: o que vê é o mundo que sempre viu, o que cheira são os cheiros que sempre cheirou, tudo o que toca é o mesmo que sempre tocou, mas, ao menos, o que ouve é o seu mundo, o mundo em que quer estar naquele momento para ser de todo ele mesmo.
Músicas tocam, pensamentos voam, todos sem nexo ou finalidade, apenas pensamentos. Mais músicas tocam, mais o negrume da noite plena o sufoca, atinge-o em cima com todo o medo que traz a escuridão desde a pré-história, mais e mais ele se sente pior, mas aquilo é o que ele quer, confrontar. Vencer seus medos. É para aquilo que caminha na noite sem querer caminhar, é para aquilo que vai desafiando todo seu mal-estar.
Mais músicas tocam, mais o tempo passa, mais ele caminha. Já não se sabe por onde anda, se em alguma estranha realidade diferente do que quer que fosse a sua, ele caminha e está longe de tudo o que era... cabelos cresceram, uma barba se formou e tomou conta de seu queixo antes de quiabo - amedrontado, ele se enxerga na água de algum lago nalgum lugar do mundo em que está, e vê um ser completamente diferente daquele que se lembrava. "Azar..." - lamenta-se - "azar!". Do outro lado do lago, alguém acena para ele - a silhueta não lhe é estranha, mas parece tão longe, tão longe...
Segue caminhando, e suas músicas continuam seguindo-no ao longo de todo o tempo. Agora, ao se ver no espelho do banheiro de algum bar em algum lugar, enxerga um senhor barbudo, algo como 30 anos de vida, uma barba ainda maior, alguma ruga e um rosto judiado, judiado... cada vez mais judiado. Enxerga, aos fundos, pessoas entrando trazendo a decadência à tona - cigarros, destilados, putas velhas e mal-formadas com bocas feias, quiçá desdentadas. Enlaçam-no, tomam-no por coisinha pouca. Mas ele ainda tem forças, ele foge, ele sai correndo daquele bar...
E ele corre, corre, corre cada vez mais, até que decola... levanta vôo. E vê no ar humanos velhos, muito velhos. Não precisa de espelho nem nada naquele momento para saber como ele próprio está - deve ter algo como 60 anos, a julgar pela média da idade dos outros velhos voadores. E ele flutua, passa rápido por eles, e vê a tristeza e desleixo estampada no rosto de todos eles. Topa com urubus medonhos, assustadores, que não atacam ninguém, mas pairam no ar, pairam...
Ele finalmente consegue diminuir o ritmo. Aos poucos, sente que consegue controlar, e vai pousando. Consegue pousar, ufa! "Consegui!". Ah, aquilo parece a ele uma vitória, finalmente.
Ao pousar, ele vê várias cadeiras - enfileiradas, e colocadas como em uma sala de cinema. Todas estão ocupadas por velhos - alguns, completamente entregues. Outros, com alguma ânsia impossível e magnífica, uma ânsia de se deslocar daquelas cadeiras, fugir daquilo que pareciam amarras invisíveis...
O velho, o nosso velho, batendo nos 80 anos, senta-se na única cadeira vaga, na qual o seu nome brilha no negrume da noite escura. Ao sentar-se, toma sentido de que, às suas costas, há um lago. E, ao fundo daquele lago, há um telão gigante.
No telão, surge um assustador palhaço amarelo e verde. O palhaço amarelo e verde tem um sorriso estampado na cara, e anuncia, agora, que irão assistir à sessão da vida do nosso velho. O palhaço dá uma risada, e se retira da tela.
O velho, então, assiste a sua vida, todos os momentos de felicidade que sempre viveu, até o momento em que as coisas começaram a complicar, até mais ou menos o momento em que ele saíra de casa para caminhar no negrume da noite. Percebe que vira um mendigo tiritando de frio logo à margem de sua casa, logo no início de sua caminhada, aquilo de tanto tempo atrás, anos, séculos atrás... percebe que não o ajudou, e percebe que, exatamente no momento em que deu as costas para o mendigo, seus cabelos cresceram, e uma barba nasceu...
O velho fica desesperado! O velho percebe as coisas ainda, ainda tem algum sentimento, alguma consciência. Ele entende o que aconteceu, e percebe que tudo o que está sentindo naquele momento é possivelmente o maior absurdo aterrorizante que um ser humano possa sentir - a vontade de se entregar, se matar?
O velho não quer morrer! (O menino não quer morrer!) O velho tem medo! (O menino tem medo!)
O velho/menino tem, então, um momento de lucidez.
O velho/menino sabe que o menino vai se agachar, em alguns 10 minutos, ele crê, na outra margem daquele lago em que o velho/menino está sentado assistindo à sessão de cinema.
O velho/menino põe-se a nadar enlouquecido! Não sabe de onde tira forças, seus músculos não deviam ter toda aquela força, apesar de o lago ser curto. Mas, a verdade, talvez a verdade fosse que existia um menino ainda empurrando aquele velho...
O velho/menino chega à outra margem, e percebe que nadou em uma diagonal, fugiu da reta em que queria encontrar o menino. Olha para a outra margem ao sair da água, e percebe uma pessoa acenando para o menino que ele era.
Corre desesperado em direção ao menino que era, lá está o velho/menino se desfacelando, sem forças, cada vez mais fraco.
Mas o velho/menino chega ao menino que era. E, ao chegar, o menino toma um susto absurdo. Apesar do susto, porém, o menino sabe exatamente para o que está olhando, de alguma estranha forma nalguma estranha realidade, mas ele sabe.
O velho/menino, ao chegar ao menino, tem uma faca nas mãos. Não se sabe de onde tirou aquela faca, mas ele a tem. E encara o menino nos olhos, e tem raiva do que o menino fez. Lembra, porém, de que aquele foi ele...
AO olhar pela última vez o menino que era, o velho/menino diz, apenas:
"O mendigo."
Crava no peito a faca. E os palhaços riem, e o menino foge, desesperado, daquele lugar, para onde espera nunca mais voltar...
Ao despertar daquilo, o menino não sabe. Não sabe se viveu um sonho, ou alguma estranha realidade; não sabe, sequer, onde está, a princípio. Depois de uma estranha confusão maluca, percebe-se num parque, com crianças correndo por todas as direções, famílias, felicidade esplêndida e incandescente, maluca, contagiante, absurda.
Toma, em seu bolso, seus fones de ouvido, suas músicas.
E, enquanto uma menininha linda passa pela frente dele de mãos dadas com seu pai; enquanto uma bela mulher de algo como seus 30 anos passa embalando um carrinho de bebê, e enquanto o sol sorri da forma mais bela que jamais havia sorrido para o nosso menino, ele tem uma certeza...
Depois do que quer que fosse que houvesse sido toda aquela doideira, ele tinha absoluta certeza de que aqueles acordes magníficos de Stand By Me embalado por um Oasis ainda melhor do que jamais fora jamais lhe soariam novamente os mesmos.
Ele nunca mais ouviria Stand By Me. Pelo menos, nunca mais do mesmo jeito.
No universo inteiro que o rodeava, a vida lhe divertia imensamente, e explodia em seu peito, como nunca antes...
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