sexta-feira, 4 de junho de 2010

Ele nunca mais ouviria "Stand By Me".

Rumava preso na clausura da sua alma pela noite. Fechado como estava, não teria paciência para se solidarizar com o frio por que passava o mendigo enrolado em jornais velhos com manchetes de algum político sorridente roubando o povo, talvez apenas por existir. E era fria a desgraçada daquela noite, e era fria a sua alma, mesmo, sem nenhuma brincadeira. O mendigo ficou ali, pelo caminho do rumo daquele menino, ali ficou o mendigo...

Atravessou as ruas com cara de capeta, de demônio. A vida era péssima como olhar para o horizonte em uma grande cidade, era terrível e ponto. Pessoas passavam mentindo para suas próprias vidas ao seu lado, perdidas na inconsciência coletiva do que é sermos o que somos, tornar-mo-nos o que nos tornamos com esse passar dos séculos, com a sociedade construída que foi, do jeito que foi - tudo é certo nessa vida sem que nós realmente achemos certo...

Não tinha por que ver muitos problemas na vida. Sempre tivera de tudo, e ainda era jovem. Mas o que vem a nós vem de qualquer modo, e mata ou cria.

De que modo havia passado aquele dia pensando em tudo? Percebendo tantas coisas que percebera em apenas uma noite, pensando na metafísica e no universo, e em toda a baboseira transcendental de sermos o que somos no meio de tudo o que é... etc, etc, deixa quieto? "Não!", gritou-lhe o espírito inquieto, e ele consente, e ele resolve resolver seus problemas.

Toma de uns fones de ouvidos e de suas músicas, e as enfia no ouvido tornando-o único na sua essência: o que vê é o mundo que sempre viu, o que cheira são os cheiros que sempre cheirou, tudo o que toca é o mesmo que sempre tocou, mas, ao menos, o que ouve é o seu mundo, o mundo em que quer estar naquele momento para ser de todo ele mesmo.

Músicas tocam, pensamentos voam, todos sem nexo ou finalidade, apenas pensamentos. Mais músicas tocam, mais o negrume da noite plena o sufoca, atinge-o em cima com todo o medo que traz a escuridão desde a pré-história, mais e mais ele se sente pior, mas aquilo é o que ele quer, confrontar. Vencer seus medos. É para aquilo que caminha na noite sem querer caminhar, é para aquilo que vai desafiando todo seu mal-estar.

Mais músicas tocam, mais o tempo passa, mais ele caminha. Já não se sabe por onde anda, se em alguma estranha realidade diferente do que quer que fosse a sua, ele caminha e está longe de tudo o que era... cabelos cresceram, uma barba se formou e tomou conta de seu queixo antes de quiabo - amedrontado, ele se enxerga na água de algum lago nalgum lugar do mundo em que está, e vê um ser completamente diferente daquele que se lembrava. "Azar..." - lamenta-se - "azar!". Do outro lado do lago, alguém acena para ele - a silhueta não lhe é estranha, mas parece tão longe, tão longe...

Segue caminhando, e suas músicas continuam seguindo-no ao longo de todo o tempo. Agora, ao se ver no espelho do banheiro de algum bar em algum lugar, enxerga um senhor barbudo, algo como 30 anos de vida, uma barba ainda maior, alguma ruga e um rosto judiado, judiado... cada vez mais judiado. Enxerga, aos fundos, pessoas entrando trazendo a decadência à tona - cigarros, destilados, putas velhas e mal-formadas com bocas feias, quiçá desdentadas. Enlaçam-no, tomam-no por coisinha pouca. Mas ele ainda tem forças, ele foge, ele sai correndo daquele bar...

E ele corre, corre, corre cada vez mais, até que decola... levanta vôo. E vê no ar humanos velhos, muito velhos. Não precisa de espelho nem nada naquele momento para saber como ele próprio está - deve ter algo como 60 anos, a julgar pela média da idade dos outros velhos voadores. E ele flutua, passa rápido por eles, e vê a tristeza e desleixo estampada no rosto de todos eles. Topa com urubus medonhos, assustadores, que não atacam ninguém, mas pairam no ar, pairam...

Ele finalmente consegue diminuir o ritmo. Aos poucos, sente que consegue controlar, e vai pousando. Consegue pousar, ufa! "Consegui!". Ah, aquilo parece a ele uma vitória, finalmente.

Ao pousar, ele vê várias cadeiras - enfileiradas, e colocadas como em uma sala de cinema. Todas estão ocupadas por velhos - alguns, completamente entregues. Outros, com alguma ânsia impossível e magnífica, uma ânsia de se deslocar daquelas cadeiras, fugir daquilo que pareciam amarras invisíveis...

O velho, o nosso velho, batendo nos 80 anos, senta-se na única cadeira vaga, na qual o seu nome brilha no negrume da noite escura. Ao sentar-se, toma sentido de que, às suas costas, há um lago. E, ao fundo daquele lago, há um telão gigante.

No telão, surge um assustador palhaço amarelo e verde. O palhaço amarelo e verde tem um sorriso estampado na cara, e anuncia, agora, que irão assistir à sessão da vida do nosso velho. O palhaço dá uma risada, e se retira da tela.

O velho, então, assiste a sua vida, todos os momentos de felicidade que sempre viveu, até o momento em que as coisas começaram a complicar, até mais ou menos o momento em que ele saíra de casa para caminhar no negrume da noite. Percebe que vira um mendigo tiritando de frio logo à margem de sua casa, logo no início de sua caminhada, aquilo de tanto tempo atrás, anos, séculos atrás... percebe que não o ajudou, e percebe que, exatamente no momento em que deu as costas para o mendigo, seus cabelos cresceram, e uma barba nasceu...

O velho fica desesperado! O velho percebe as coisas ainda, ainda tem algum sentimento, alguma consciência. Ele entende o que aconteceu, e percebe que tudo o que está sentindo naquele momento é possivelmente o maior absurdo aterrorizante que um ser humano possa sentir - a vontade de se entregar, se matar?

O velho não quer morrer! (O menino não quer morrer!) O velho tem medo! (O menino tem medo!)

O velho/menino tem, então, um momento de lucidez.
O velho/menino sabe que o menino vai se agachar, em alguns 10 minutos, ele crê, na outra margem daquele lago em que o velho/menino está sentado assistindo à sessão de cinema.

O velho/menino põe-se a nadar enlouquecido! Não sabe de onde tira forças, seus músculos não deviam ter toda aquela força, apesar de o lago ser curto. Mas, a verdade, talvez a verdade fosse que existia um menino ainda empurrando aquele velho...

O velho/menino chega à outra margem, e percebe que nadou em uma diagonal, fugiu da reta em que queria encontrar o menino. Olha para a outra margem ao sair da água, e percebe uma pessoa acenando para o menino que ele era.

Corre desesperado em direção ao menino que era, lá está o velho/menino se desfacelando, sem forças, cada vez mais fraco.

Mas o velho/menino chega ao menino que era. E, ao chegar, o menino toma um susto absurdo. Apesar do susto, porém, o menino sabe exatamente para o que está olhando, de alguma estranha forma nalguma estranha realidade, mas ele sabe.

O velho/menino, ao chegar ao menino, tem uma faca nas mãos. Não se sabe de onde tirou aquela faca, mas ele a tem. E encara o menino nos olhos, e tem raiva do que o menino fez. Lembra, porém, de que aquele foi ele...

AO olhar pela última vez o menino que era, o velho/menino diz, apenas:
"O mendigo."

Crava no peito a faca. E os palhaços riem, e o menino foge, desesperado, daquele lugar, para onde espera nunca mais voltar...

Ao despertar daquilo, o menino não sabe. Não sabe se viveu um sonho, ou alguma estranha realidade; não sabe, sequer, onde está, a princípio. Depois de uma estranha confusão maluca, percebe-se num parque, com crianças correndo por todas as direções, famílias, felicidade esplêndida e incandescente, maluca, contagiante, absurda.

Toma, em seu bolso, seus fones de ouvido, suas músicas.

E, enquanto uma menininha linda passa pela frente dele de mãos dadas com seu pai; enquanto uma bela mulher de algo como seus 30 anos passa embalando um carrinho de bebê, e enquanto o sol sorri da forma mais bela que jamais havia sorrido para o nosso menino, ele tem uma certeza...

Depois do que quer que fosse que houvesse sido toda aquela doideira, ele tinha absoluta certeza de que aqueles acordes magníficos de Stand By Me embalado por um Oasis ainda melhor do que jamais fora jamais lhe soariam novamente os mesmos.

Ele nunca mais ouviria Stand By Me. Pelo menos, nunca mais do mesmo jeito.

No universo inteiro que o rodeava, a vida lhe divertia imensamente, e explodia em seu peito, como nunca antes...

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