domingo, 29 de agosto de 2010

"Que me perdoem as feias..."

Três pessoas tocavam num bar. Vocal e guitarra, baixista e baterista distribuíam os acordes, administravam suas progressões mudando o tom da noite a cada instante. Mandavam blues, mandavam jazz, mandavam rock, pausa, qualquer coisa... e nisso as mesinhas comportavam pessoas, típico bar de solitários. Não havia grupos de três pessoas ou mais, no máximo um casal aparentando tristeza modificava aquele cenário de solidão, o resto todo também era solidão. E os pensamentos eram quase visíveis, como se evaporassem dos cérebros em matéria gasosa, sem, no entanto, se poder discernir de que substância era composta essa matéria: tristeza, alegria, desleixo, preocupação...
E o som seguia soando naquele ambiente, quando entrou um rapaz. O rapaz aparentava pouco mais de 20 anos, bem-feito, barba por fazer, um aspecto quase latino, não fosse pelo tom de pele. E o rapaz foi notado por todos naquele ambiente porque era belo; a primeira impressão que se tinha sobre ele era a de que provavelmente nascera do ventre de uma sereia em uma noite de luar dourado, algo do tipo, algo mais do que poético, transcendente. E tinha um sorriso que o destacava ainda mais daquele ambiente triste, branco e perfeito, naquele bar escuro ele soava como pássaros cantando no final de uma caverna escura.
O rapaz pareceu não dar bola para aquela modificação toda nos aspectos, nas feições de tudo. Dirigiu-se ao bar, onde pediu uma dose de algum destilado vulgar, e sentou-se, e ali mesmo sorriu para a garota que atendia no bar, e conversou; e ela, que se mantinha constantemente triste, triste conhecida de todos os freqüentadores frequentes daquele local, sorriu, como há muito tempo não sorria, e seu corpo ficou mais ereto, ombros mais altos, sorriso firme.
Vendo aquilo, um casal sentado em uma mesa começou por sorrir pelos olhos, daqueles olhos que dão vazão às primeiras ações do corpo, e depois concluíram como se devia, sorriram ambos e posteriormente se olharam nos olhos um do outro, e sorriam com o sorriso e com os olhos e com toda sua linguagem corporal, menos tensa, e se beijaram como deviam se beijar.
E a banda, o trio no palco, obviamente havia notado o rapaz, belo como o Sol das seis. Notaram também aquele casalzinho postado logo à mesa da frente, aquele casalzinho que aparentava reescrever num pergaminho velho e amarelo uma nova história. Sem saber exatamente por que, a banda também mudou, o vocalista tirou sua camisa xadrez escura como breu e exibiu uma singela camiseta branca por baixo daquilo, e também sorriu, e começou a cantar sorrindo, tocava um funk bem animado do Tower of Power agora; o baixista ficou tão mais feliz com aquela batida swingada que ficou a ponto de girar seu corpo no ar no ritmo dos dedos tocando aquele baixo, do baterista nem se fala...
E, naquele impulso todo que tomou conta do barzinho, sujo, escuro, feio da meia-noite de alguma cidade, os solitários começaram a bater na mesa do bar inconscientemente, naquele ritmo empolgante do funk, baixinho baixinho, para apenas eles ouvirem, e os casais balançavam discretamente nas cadeiras; alguns solitários levantaram, foram ao bar, pediram algo para beber, mas agora ficavam de pé, curtindo o som, aquela animação toda. De repente, alguém chegou na entrada do bar e percebeu aquela onda de sorrisos, e entrou sorrindo. Logo, logo, entrariam mais pessoas, magicamente cerca de quinze entraram em 20 minutos. E o bar animava-se...
Depois de trinta minutos dentro daquele bar, o rapaz belo, quase latino, que entrara ali, o rapaz despediu-se da garota do bar que se sentia excepcionalmente bem; o rapaz tomou o último trago da sua bebida, fez um gesto ao vocalista como que se despedindo, e tomou seu rumo para fora do bar, caminhando lentamente.
Uma garota que vira o rapaz chegar saiu atrás dele; estava encantada com ele, e queria conhecê-lo. Quando saiu do bar, porém, logo atrás do garoto, ele sumira: por toda a vista donde se alcançava, não havia rapaz nenhum, e a noite cantava mais forte sua música, que era de silêncio e rompantes fora do bar.
E a garota voltou para dentro do bar, e foi ao balcão; tudo mudara, tudo estava tão animado, e a garota do bar estava demais, muito alegre atrás do balcão.
A garota que fora atrás foi até a garota que conversara com o garoto.
Perguntou quem era o garoto, e a garota do bar perguntou: “Que garoto?”
A garota deu de ombros e seguiu curtindo tudo aquilo que uma coisa bela pôde causar naquele bar, esse bar que era tão parecido com a vida.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Carta do garoto 20, ao mundo e à alma.

"Ah, que sensações desprendem-se de mim e assustam. Tenho pessoas aqui ao meu redor que não me compreendem e temem: temem aquilo que não entendem, aquilo a que resistem que é a vida de verdade solta no mundo fora do que vivemos, todos vivendo dentro da mesma bolha saturada e se matando por um pouco de papel ou um pouco mais de sociedade, esse vício maldito.

Ah, que medo tenho dentro de mim ao mesmo tempo. Que medo de soltar todo esse apego e procurar aquilo que nos proíbem: a vida que nosso coração quer, os caminhos com coração de Dom Juan e Castañeda. Ver o mundo como algo diferente, numa concepção diferente e ousada. Esquecer daquilo que nos prende tão mesquinhamente e se soltar sem medo por todos os caminhos com coração, e com os nossos corações soltos das jaulas. Com os nossos corações gritando por aí e fugindo de nós num eterno pega-pega divertido no qual sempre venceríamos...

Ah, que fascinação pela qual me toma o crepúsculo e surpreende meus sentidos; e, assim, retoma meus velhos sonhos, tentando vencê-los conjurando novos sonhos. Por que tamanha exultação me pega o crepúsculo vencendo o mistério do sol com um pouco de vinho e Janis Joplin com "Cry Baby", que é como procuro o ajudar a me ajudar - falo do crepúsculo, esse fantasma camarada...

Ah, não me mente jamais, minha alma. Pode sempre - dou-te permissão - tomar-me pela mão e levar-me aos mais diversos lugares que de ti não tenho medo algum! E sei que queres meu bem, meu bem, por isso entrego-me ao teu belprazer no meio da tempestade de quaisquer sentimentos que venham a mim, calhando-me eles ou não. E tu me levas assim, embriagada por qualquer coisa ou não, sem carteira de motorista ou RG ou CPF, para qualquer canto do universo; da minha mente; da mente dos outros. E tu me tens assim, para todo o sempre, trato de sangue e de ectoplasma além da vida.

Ah, minha alma, digo-te: tenho dentro de mim a fagulha para um incêndio, resistindo a tudo. Fagulha que não se apaga, não, de forma alguma: ela se transmuta, modifica-se ou mente para todas as forças, mas permanece ali - triste de mim que ela fica ali fagulha, não prende o fogo e vira chama para destruir todo o universo que criei dentro de mim e virar algo maior que tudo, que vê e enxerga o mundo de um jeito que não é o jeito de sempre, sem medo de nada e humilde a tudo.

Ah, minha alma, digo-te: sou pequeno, mas eu e minha fagulha vencemos o inferno com um pouco de álcool..."